segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

O livro roxo


(conto novo)

por Luciana Pinsky


Pronta para dormir, campainha toca, ninguém, nada a não ser um envelope chamativo, roxo. O que será? Um livro pequeno de capa roxa. Não conheço, de onde terá vindo? Sem remetente ou cartão. Abro. Uma história de amor, não serão todas? Daqueles textos irresistíveis. Adio o sono, leio.

Protagonista confusa: ela gosta, depois não gosta, volta a gostar, odeia, ama. Que mulher que não sabe o que quer. Vixi. Durmo, finalmente. Acordo pouco depois, levanto no breu. Perambulo, não quero, mas volto ao livro roxo, é madrugada, amanhã cedo trabalho. 

Por que ela insiste nesta história? Como é inocente, não percebe que não pode dar certo?
Volto a dormir. Sonho com ele. Ah não, justo ele, justo ele, que eu expulsara há tanto dos meus sonhos. Primeiro o mandei embora de minha casa, depois dos meus dias e finalmente, com muito labor, de minhas noites. Por que esse fantasma agora?

Acordo aflita, atrasada. Corro, tanto a fazer. Agir, resolver, esta sou eu. Faço. Adoro. Quanto mais tempo na rua, melhor. Especialmente porque em casa o tal livro roxo me espera. Da tal mulher que não me obedece e flerta com o abismo. Janto. Que fome. Sem fome. Que fome. Puxa, será que nem isso sei?

Já é tarde quando volto, banho, cama, jornal (não deu tempo de ler antes). Ele lá, me chamando. Quer que eu largue tudo. Exige toda minha concentração, mas estou tão cansada, não quero, não posso. Preciso dormir. Preciso agora dormir. E, no entanto. No entanto vou direto ao terceiro capítulo, onde parara na noite anterior. Quem sabe se eu terminar logo venha a paz, a paz que mereço. Mereço?

Letras, palavras, parágrafos, páginas correm, engulo quase num susto, tentando mudar o rumo da história. Mas o cansaço vence, durmo tão pesado que quase não lembro, quando o despertador toca, que ele invadira novamente minha privacidade noturna. Cara de pau! Pede desculpas, como se coubesse. Xô!

Quinta é dia de natação, me afogo no último tiro de cinquenta. Não sou de tiro, cada vez menos e os pensamentos pesam a cabeça, atrapalham o equilíbrio, onde já se viu um braço desse jeito depois de anos de piscina? Está perdida? Perdão, vou corrigir, prometo ao técnico, sem convicção. Talvez deva desistir de nadar, tentar apenas relaxar, boiar um pouco. Mas será que a água tornou-se perigosa demais para mim? Melhor terra firme? 

Trabalho, ufa, sempre me salva. Casa. Adoro minha casa desde que passei pela rua, vi o predinho amarelo de três andares, sem elevador em uma rua de casas. A placa de vende-se no segundo andar. A janelona iluminou minha alma encolhida. Reformei o apartamento e descobri tanto de mim. Minha cara, que eu mal sabia qual era. Sempre me alegra voltar para lá, mas não nestes dias. Medo. Medo do livro roxo que me tomou de mim. 

Mas, enfim, para onde mais iria? Lentamente, subo a escada. Giro a chave, tiro o livro da cabeceira, agora restam apenas dois capítulos. Chega: lanço aquela tormenta na poltrona da sala, um cobertor em cima para não me tentar. Esta noite não. É pouco. Coloco o livro em um balde, álcool, em chamas. Durmo que nem político: tranquila e profundamente. Se ele apareceu nem sei, não lembro de nada quando acordo, nem – ufa – do balde que sepultou o livro de capa roxa. 

O primeiro dia é o mais difícil e já foi. Vida que segue.  Não sei se no fim a protagonista deu a vigésima-sétima chance ao sujeito ou se tomou vergonha na cara. Melhor assim: se ela ousasse voltar com aquele lá, me daria raiva; mas se o tivesse abandonado para todo o sempre, talvez batesse pena. O que teria sido? Chega de curiosidade mórbida! O livro já era.  Dia inteiro para lá e para cá, cansada. Eu adoraria uma boa massagem, mas vou é para casa dormir, sem medo de 96 páginas de papel. 

Abro a porta. Ouço um ruído lá dentro. Ladrão? Não. Ele. Sim, ele. Ele está sentado na minha poltrona, camisa roxa, tênis roxo, livro roxo na mão.
 
- Ei, venha cá. Saudades de você.
- Como você entrou aqui? – pergunto, estupefata.
- Calma, minha querida. Entrei por suas mãos – e me mostra o livro intacto, que, em seguida, volta a ser pó. Como eu.

(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/) 

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

A torta de Dionísio



(crônica nova)

por Luciana Pinsky

Aspecto delicioso. Recheio de amêndoa, com cor de perdição. Massa brilhante, convidativa. Confesso, fiquei balançada pela trufa que se insinuava logo ao lado. Afinal, no Olimpo dos doces, chocolate é Zeus. Mas desta vez optei pela dionisíaca torta de amêndoas.

– Boa pedida. Ela é a especialidade da casa.

Na primeira mordida admirei a textura do recheio. Foi a massa, porém, que me surpreendeu.

– Vai uma dose de pinga que faz toda a diferença. – me confidenciou a moça enquanto me servia água.

E segui para a segunda mordida, certa que aquela tortinha faria a minha tarde mais feliz. O sabor inicial explodiu até o céu da boca. Mas bateu certa culpa: há tempos não comia doce à luz do dia, ainda queria expurgar dois intrusos quilos que se instalaram em meus quadris desde um feriado gastronômico na casa de um amigo cozinheiro.

A terceira mordida foi com vontade: “primeiro o prazer, depois a culpa.”, lembrei do conselho nada ortodoxo de meu pai. E minha boca entorpecida pelo doce agradeceu meu progenitor.

A quarta mordida, afobada, não teve gosto, só hábito. Tal qual cigarro com café depois do almoço para aqueles que fumam e tomam café.

Água. Boca limpa. Com a derradeira mordida veio um amargor imprevisível. Mas como amêndoa, açúcar, manteiga, farinha podem amargar uma boca? Pois foi o que aconteceu. O prazer inicial deu lugar a sensações desagradavelmente familiares. Estômago um tanto embrulhado. Leve inchaço. Esôfago afogueado e boca, putz, boca inerte.

E, assim, me deparo com uma intolerância que jamais imaginei me antigir.

Amêndoa nunca mais. Se for transgredir, fuja dos intolerantes. 

(Quer ouvir a crônica? É só clicar no link abaixo. Desta vez há uma participação especial no fim)



(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Regras do jogo



(crônica nova)

por Luciana Pinsky


Quem: Dois jogadores. Sem técnico, sem reservas.
Espaço: Dois triângulos traçados no chão.
Como: Cada um em seu triângulo, os jogadores podem interagir, dialogar e viver, enfim,  sem causar danos.
Combinado: Os jogadores devem manter-se dentro de suas linhas. Quem passar é punido com a expulsão temporária (o que pode causar certo tédio naquele que permanecer em campo).
Plateia: melhor não (a distração atrapalha os jogadores).

Prontos?  Comecem no “já”. Ah, só esqueci de mencionar a última e mais importante regra: é proibido seguir regras.



(Quer ouvir a crônica? É só clicar no link abaixo)




(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Come pitangas, pequeno


(crônica nova)

por Luciana Pinsky


Ela ficava no fundo do pátio. Para os olhos dos adultos, nem muita alta ela era. Para mim, era o mundo. Alguns de nós subíamos, outros ficavam embaixo, esperando que os de cima balançassem os galhos e as pitangas vermelhas caíssem. A força no galho tinha de ser precisa: em excesso derrubava também as frutas ainda laranjas, privando-as, por tão pouco, de chegar ao ápice do sabor. Eu era da turma dos que subiam, claro.
Foi lá, na escolinha infantil, onde entrei falando pouco e saí escrevendo bastante, que conheci aquela frutinha azedinha e doce, com uma forma toda peculiar e a cor tão linda quanto caju maduro. Quase tão gostosa quanto amora, mas que manchava menos. A amora eu comia em casa mesmo, em uma árvore que ficava abarrotada duas vezes por ano. Mas isso eu conto outra hora.
A pitangueira era a aventura, a natureza, o refúgio possíveis para uma criaturinha de cidade grande. A pitanga era a coleta e nunca enjoava. Seu gosto, a quilômetros do previsível, me convidava para mais e mais. As crianças comiam e partiam para empurrar pneu, chutar bola, escorregar. E eu lá. Sempre lenta.  Este ano, depois de tantos que me separam da pré-escola, me deparo não com uma, mas com um monte de pitangueiras. Do meu caminho até o parque pela ciclovia passo por ao menos quatro. Paro, gentilmente puxo o galho repleto para baixo e faço a festa. Depois de pedalar, reservar dois minutos para colher pitanga a 200 metros de casa tem um gostinho até transgressor.
Já meu filho prefere amora. Muito cedo ele aprendeu a reconhecer amoreira pelo formato das folhas, pitangueira pelo cheiro da folha amassada. E jabuticabeira, cacaueiro, limoeiro, cajueiro, coqueiro... Nem parece menino de metrópole. Entre tantas delícias, ele se esbalda é de amora. Sabe como é, no fundo do pátio da escola dele tem uma amoreira. E o que tem no fundo do pátio da nossa escola é sempre mais gostoso. Será que daqui a pouco, quando estiver pedalando  sozinho pela cidade, ele vai parar e catar amora no pé? Será que até lá já terá se deixado encantar pelo agridoce da pitanga? Come pitangas, pequeno, para me dar esperanças.


(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)

terça-feira, 14 de agosto de 2018

O artesão



(crônica nova)


por Luciana Pinsky

Por dias, o menino trabalhou em Emília. A garrafa pet, que outrora abrigara água de coco, agora era um parrudo tronco. Antes mero receptáculo, agora coração. As tampinhas faziam as vezes de pés e mãos, ligados ao tronco-exPET por barbantes. Uma bola de isopor insossa torna-se a cabeça cheia de personalidade, com cabelo de lã. Olhos, nariz e boca traçados a canetinha. Antes, entulho, agora boneca. Antes, quase lixo, agora a companheira do menino. Antes, quase nada; agora, quase tudo.

Por meses, o homem notou Lara, jeans, camiseta, igual a tantas, boca, carne, osso, pele. Conversaram. Ele indicou um livro, ela leu. E leu todos do mesmo autor do acervo da biblioteca do bairro. Ele mandou uma música, ela ouviu. E passou semanas conhecendo tudo o que aquela cantora gravara. Ele falou que fora campeão de natação, ela voltou às piscinas. Ele comentou que adorava a sensação de liberdade da bicicleta, ela passou a ir pedalando ao trabalho.

O menino fez Emília. Não venha com raquéis, marias, julias ou qualquer outra boneca, com nome ou não. Ele quer Emília. Pois Emília é... Emília. A Emília dele. Não tem outra Emília no mundo, por mais que garrafa pet, lã, barbante e tampinha haja aos montes.

Para o homem, Lara já não era igual a tantas, pele, carne, boca, ossos. Era a pele de Lara, a boca de Lara, os ossos de Lara, a boca – ah, a boca – de Lara. Era tudo dela e por ser ela, era dele. Deixou de ver julias, gabrielas, alices, isabelas, jeans, camiseta, carne. Ele quer Lara porque ela é... Lara. A Lara que ele forjou. Que será sempre dele não importa o caminho que seguirem, porque a Lara dele só existe para ele.

Ele pensa que molda sua Lara, assim como construíra sua Emília. Justamente o contrário: Emília e Lara que o criaram.

(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Memória do corpo




(crônica nova - última da trilogia sobre o tempo)


por Luciana Pinsky


Não foi assim de caso pensado. Toquei seu braço meio por acaso. Depois o acaso passou e o braço ficou. Mas comecemos pelo começo. Como se eu soubesse quando o começo começou.


Não sei. A memória do corpo é mais forte que a da mente. Só que ela é ruim de datas.

Palavras? Não registrei. Era para ser coisa rápida. Sempre compromissados, nós. Mas o tempo tem seus caprichos. Como ela.

Apoio o pé na parede. Espero. Quando passei eu a esperá-la?
Ao vê-la, os dentes procuram o lábio. Esses lábios que já. Os mesmos dentes que.

A partir daí dentes e lábios fizeram o que dentes e lábios devem fazer. Foi um blábláblá sem fim. Mas se me perguntar o que falamos, não sei. Futebol talvez. Algum livro que nos ocupou a noite. Banalidades sobre a política atual. E valas, diversas, o ar limpo almejado. Isso, valas e ar, certamente.

Minha mão no braço dela. Choque. Será estremecimento? Ou apenas resultado da secura de inverno?

A memória do corpo é mais forte que a do espírito. Só que ela se confunde. Por vezes, intencionalmente.

O braço eletrizado move-se para longe de minha mão: um gesto pretensamente trivial. Como nossa conversa, como meu toque, como nosso encontro. Como quase tudo na vida, que a gente acha que é assim mesmo por capricho do tal “deus sonso e ladrão”, mas que nós mesmos estamos cavando com nossos pés, nossas mãos e demais recursos que se fizerem presentes. Sei, divago. Mas o que você quer de mim? O que quer?

- Boa pergunta. O que você quer?...

É só o que lembro, é só o que consigo dizer hoje. E também que a memória do corpo é mais forte que a da alma. E ela é mortalmente sedutora.

(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Perigos da rua


(crônica nova)

por Luciana Pinsky


Eu ainda não existia para você, mas você já existia para mim. E percebê-lo ignorando-me era ruim. Pior, no entanto, foi vê-lo concentrado em outra. Tão concentrado que parecia que poderia morrer naquele momento infeliz. Aliás, poderia mesmo, despreocupado que estava com os perigos das nossas ruas. Que desleixo, Mau!

Aquela cena feriu minhas retinas, mas também me intrigou. Quem era você? Quem é você? O destemido que eu presenciava ou um pseudoconciliador de coisas inconciliáveis? O moço certinho de fala suave que se apresentava em público ou o desvairado inconsequente ali, na minha frente? Homem de ciências ou das artes?

Pior é que eu tentava desviar os olhos para o futuro, mas só conseguia enxergar aquela cena quente, quer dizer, indecente. E a moça despudorada, não sabia que eu poderia vê-los? Não sabia que eu não queria vê-los? Não sabia que ao vê-los eu, imediatamente, me apaixonei?


Pois é, você se achava muito boa? Tanto ostentou, que dançou. Ele é meu agora. Perdeu, Patricinha!!!!!!!


(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)