terça-feira, 14 de julho de 2009

A passagem

(conto novo)

E tudo teria ficado assim se não fosse aquela sua passagem rasgante. De cara, não percebi você. Na verdade, só fui perceber horas depois ao reviver a cena na minha cabeça. Faço sempre isso, vivo e revivo. Aquele cardume de gente de patins à minha volta e eu preocupado em defender a Lorena, minha pequena. Só muito depois, reconstituindo a cena, vi você. Você que gostava de patinar. Você que sempre me pediu para patinar junto. E eu comecei a patinar sim. Mas só depois. E levei comigo a Margarida, mãe de Lorena. Ah, Margarida faz tudo o que eu quero, como você algum dia já fez. O melhor é que eu nunca tive de pedir. Você adivinhava meus pensamentos, parece, como ela faz agora. Margarida. Você. Eu. Lorena.

Lorena não. Ela não faz só o que quero. Está mais para o contrário. Eu que nem me imaginava com essa responsabilidade sobre a vida de alguém, sou o tal do macho provedor, como as mulheres criticavam quando queimavam sutiã. Por mim, tudo bem. Nunca gostei de sutiã mesmo.

E por que você foi passar por mim tão rápido? Por que não olhou para trás? Será que me viu? Ou será que fugiu da minha decadência? Decadente, eu? Não... continuo exatamente o mesmo. O mesmo carro. O mesmo emprego. Os mesmos amigos. A mesma família. Os mesmos sapatos. O mesmo gato. Mesmas óperas, romances. Mulher, apenas, que mudei um pouco. Entre você e a Margarida teve a Elisabeth. E a Norma. E a Zezé. É, acho que foi isso. Mas nenhuma patinava. Nenhuma tinha pernas tão densas e raciocínio tão debochado. Nenhuma me deixava para trás. Você, no início, também não deixava. Você não voava, ainda insegura. Ia devagar e eu acompanhava de bicicleta aos sábados. Mas parei de acompanhá-la e você foi aumentando o ritmo a ponto de perder-me. Quem mandou?

E hoje, do nada, depois de tanto, tantas, você passa por mim e não me vê. Como ousa não ter me visto? Você jurou ser sempre minha e eu sei que é. Mas você sabe que não poderia ser a mãe de Lorena. Não era para ser, diriam os místicos. Sou místico quando convém. Psicanalista quando me explico. Você queria que eu patinasse tão rápido quanto você. E eu nem patinar queria.

Mas hoje vendo suas pernas firmes e precisas me deixando para trás... Ah. Será?

(Ilustração: Thomás Coutinho Camargo - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Voo apaixonado



(conto com nova ilustração)

A intensidade daquela relação transparecia nos estragos. Começou com perna de cama e de cadeira no chão: marca da paixão intensa. Depois foi uma frigideira na parede, sinal de problema. Por fim, a costela quebrada mostrou que o amor já era. Já?

Ele conheceu Renoar, linda morena. Ela tentou Baltazar, sempre tão prestativo. Cama, cadeira, frigideira e costela intactos. Já o coração deu marcas de cansaço.

Ele largou Renoar, ela fugiu de Baltazar. Nunca mais amar, nunca mais quebrar. Ele ficou com suas argilas, ela investiu seriamente nas palavras cruzadas.

Em uma noite fria de inverno temporão, ele saiu do seu portão e foi ao bar atrás de Renoar. Com letras e mais letras na cabeça, ela precisava espairecer e chamou novamente Baltazar, das mãos quentes e cabeça leve.

Ele bateu os olhos nela e bateu boca com Renoar, que foi embora, sentida. Ela só o viu quando a bela morena levantou da mesa. Ele a chamou com o olhar, ela apontou para Baltazar. Ele esfregou as mãos e as soprou, mostrando que era ainda mais quente que o concorrente.

E os estragos voltaram. Pratos voaram. E os dois se mandaram para a praia. O carro derrapou. E ela finalmente voou.

(ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)