sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Maria e o mar


(conto novo)

por Luciana Pinsky

Maria nunca viu o mar. Já viu queda brusca, dor profunda, montanhas de todos os tipos e tamanhos. Viu trem, ônibus e avião. Elevador e escada rolante. Ruas, avenidas, estradas. Piscina, lagos e rios também. Mas nunca, nunquinha colocou seus pés na areia da praia.
Ela já amamentou três filhos, casou a mais velha, não tarda será avó. Compartilhou a vida com quatro homens. É casada, já foi solteira, viúva e separada. Mas nunca, nem uma única vez, viu o horizonte vazando água. A espuma brincando na areia.
Ah, Maria, eu quero estar nos seus olhos quando eles encararem o mar. Adoraria calçar seus pés quando a areia fina os envolver. Vestir seu corpo temeroso e ávido da correnteza. Sentir, enfim, o arrepio da sua pele quando o vento grudar o sal da água em você.
Para mim, ao contrário, o mar veio antes de dor, montanha, piscina, gente. Nasci do mar, tal como Afrodite. Peixes, tartarugas e ouriços ouviram meu choro inaugural. Seguem ouvindo. O sal marcou minha pele, que até hoje se ressente da sua falta.
O mar sou eu. Ele calmo, eu tranquila. Ele onda, eu energia. Ele frio, eu gelada.  Não... quando eu for, ele ficará. Ele é muito mais. Ele é Raul dormindo no colo da tia com o balanço suave e morno. Ele é Pedro desafiando-se. Ele é Dora virando peixe, virando ela, me deixando para trás.
O mar é verbo. Não. O verbo veio depois. Tudo veio depois. O mar é. Sempre. Ele era, ele foi, ele é, ele será. E eu, quando muito, sou. Um pouco.
O mar é deus. Não. Até deus veio depois. E só para alguns.
E você, Maria, inverteu tudo. Como pode existir vida sem água salgada? Como será a primeira vez no mar? Você se tornará devota? Pulará ondas para Iemanjá? Ou se perderá no absoluto? Ah, isso é com você.
Mas, sabe, Maria, é um pouco injusto. Eu nunca terei o mar pela primeira vez. 


(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Casa tombada

(conto novo)
por Luciana Pinsky

Primeiro foi a faca. De silicone, cortava fruta, legume, carne, a salvação de tantas noites. Não estava mais lá. Depois, notei a colher para sorvete. Não qualquer uma. Aquela que tem uma espécie de pá por trás, igual das sorveterias. Lembro quando encontramos e nos dissemos que a partir daquele momento, sorvete toda noite, que nem na viagem para Toscana.

Demorou, mas doeu o sumiço do descaroçador de azeitona. Para que você quer isso, perguntei. Você disse que às vezes a gente não sabe o que precisa até se deparar com o que precisa. E que eu iria adorar, já que era fã de azeitona. Ainda sou, e agora só com caroço.

A panela de pressão foi presente seu no nosso primeiro dia dos namorados. Você nunca fez feijão na vida? - riu. Na época você achava até minhas faltas engraçadas. Depois notou que elas se multiplicavam que nem gremlin molhado e a graça acabou. A panela ficou, intacta.

E a tábua? Eu tinha uma linda, de vidro. Você disse que ela servia para colocar na mesa, servir um queijinho, mas na hora da lida, só a de madeira. Ou de plástico. E percebi por quê. E agora, cadê?

Pior é olhar o vazio no lugar daquela xilogravura do Jota Borges pela qual nos apaixonamos juntos lá em Bezerros. Dava um ar quente para casa, um ar de casa da gente, mas quando a gente deixa de ser a gente a casa tem de deixar de ser quente? A xilo se foi, mas estranhamente as fotos você deixou todas, inclusive dos momentos felizes, assinando papel com cara de para sempre. Não tenho meu descaroçador de azeitona, mas preciso topar todo dia com o passado que o presente mudou.

Ah, e aquela estranha e pesada máscara que reclamei tanto de carregar de Botswana para cá porque ocupava muito espaço na mala e quando foi para a parede percebi que a artista só pode tê-la pensado para nossa casa? O que ponho lá agora? Nada mais cabe ali.

Estranhamente, ainda guardávamos CDs. Você levou aquele raro que eu tinha do Riachão, mas deixou o da Tulipa Ruiz que já está copiado e decorado. Será que Tulipa funciona sem Riachão? Será que reconheço a casa sem você? Abro um livro ao acaso. Presente meu para você no nosso aniversário de um ano, com dedicatória piegas: você me faz uma pessoa melhor. Agora quem sou? Pior?

Outro dia tive de imprimir um documento, tão raro isso. E corre para a vizinha, pois a impressora não existe mais. De volta, fui grampeá-lo. Com que grampeador? Tá tudo na metade por aqui, o vazio que se estende da cama à parede, do peito ao chuveiro.

Pois banheiro e quarto ficaram espaçosos demais. Ganhei as duas gavetas que você insistia em ocupar com perfumes, barbeador e até uns creminhos (que jamais usou). Os armários do quarto estava tentada a ocupar, mas quando abro, vem a vontade oposta, de esvaziar as minhas estantes até ficar só com o mínimo, para que tanta coisa, para que tanta coisa de alguém que já não é?

Raras vezes me largo despreocupada no sofá (sem pufe), mas logo sobe um arrepio: penso sentir a maçaneta girando daquele jeito tão seu de virar a maçaneta. Encaro. Inerte. Você nunca mais a fará girar, sei bem. Só não sei quem sou só.

Mas, prometo: a partir de hoje começo a me descobrir.

(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Se nada der certo

(depois da polêmica do evento “SE NADA DER CERTO” em uma escola me deparei com este texto com uma visão de um adolescente com uma visão um pouco diversa sobre o “dar certo”)

Nada deu certo para mim. Nada? Bom, nada do que eu tinha imaginado que seria minha vida. Sempre fiquei na minha, de boa. De boa com quem é de boa, claro. Na minha classe tinha gente muito estranha. Gente que andava largado, parece que nunca se olhou no espelho. Gente que vinha com camisa às vezes meio rasgada, gente que usava uns cadernos do ano anterior, caneta até acabar toda a tinta. Parece que uns tinham bolsa, sei lá. Gente que grudava no professor, fazia um monte de perguntas, não estava nem aí para curtir. Tá certo que não dava para esse povo curtir, pois não tinha nada a ver com a gente, gente de boa. 

Bom, fora, então, as meninas estranhas e os meninos esquisitos, o resto da turma era de boa. Eu estudava para passar nas provas e sempre deu certo. Nunca fui aluno 10, nunca fui aluno 0. Meus amigos vinham sempre em casa, adoravam a piscina, a quadra de tênis, o campinho de futebol, o lanche da tarde.  Eu saia muito, curtia muito. Achava que tudo já tinha dado certo. Só que não.


Um dia cheguei na escola e parecia tudo muito diferente. Meus amigos nem chegaram perto. Ficou todo mundo me encarando, como se a minha camisa estivesse rasgada. Quando entrei na sala, meu lugar estava tomado e quando quis sentar lá me falaram para ir para o canto. Não quis discutir, sou de boa. Quando sentei, todo mundo começou a gritar: ‘filho de ladrão, filho de ladrão’ até o professor entrar, pedir para pararem, dizer que não iria aceitar descriminação em sala de aula. Que vergonha. Nada deu certo.

(8/6/2017)