quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Jet lag


(crônica nova)

Por Luciana Pinsky


Camisa vinho de manga curta. Estampada por folhas de plantas médias para grandes cor de gelo. Três botões de cima para baixo desabotoados. Tez vermelha, pelos pretos escapando do tecido. O cabelo, não abundante mas quase comprido, recentemente pintando de preto. Apresento meu companheiro de viagem de horas, horas e ainda mais horas em um voo sem fim ao outro lado do mundo.

E minha cabeça começa a rodar de raiva porque era você que deveria estar ao meu lado. Você. Com cabelo (vasto, por sinal) naturalmente multicolor. Camisas impecavelmente passadas (como manter assim depois de horas amassadas na mala ainda é um mistério para mim, que sempre recorro ao miniferro de passar que carrego), certamente mangas compridas e um hálito convidativo. Pena que a língua nunca tenha completado o convite.

A culpada é ela. Ela. Elinha. Elíssima. Tudo caminhava bem, você usava sua fina ironia comigo. Eu pressentia que sua timidez iria, finalmente, deixar-nos. Debaixo daquela banca de sério certamente um animal sem controle me procuraria, me derrubaria, me arrebataria. Levaria-me para uma viagem bem mais longa que essas intermináveis horas ao lado do ser que – agora – decidira roncar.

Mas ela. Assim no mais, ela. Eu que sabia de todos seus passos só senti o perigo tarde demais. Vi os olhares, mas olhar pode ficar no olhar. Deixei passar. Erro. Você era outro. Emagreceu. Um bom humor irritante. Sorriso, risos até. Você nunca foi de gargalhada. Falava pouco, contava nada, vago. Fugia. E o olhar mudou também. Às vezes mirava qualquer coisa e permanecia assim por longos minutos até ser interrompido.

Mas ela? Por que ela? Ela não tem nada a ver com você. Não entende nada de moda (você gosta de luxo, não consigo imaginá-lo subindo no metrô de tênis) ,vive correndo por aí (você é 100% sedentário), um pouco folgada (você sempre odiou gente intrometida), aventureira (vai me dizer que você vai segui-la em lombo de camelo?), “liberal” (aposto que apronta) e nem loira é. Eu também não, mas posso ser se você quiser.

Ufa! Finalmente o avião pousando. Meu vizinho, ainda meio chapado de sono, limpa a baba da noite bem dormida na minha blusa. Mas não faz mal. Você estará me esperando no aeroporto. Sem ela.

(Encontros III)