terça-feira, 14 de agosto de 2018

O artesão



(crônica nova)


por Luciana Pinsky

Por dias, o menino trabalhou em Emília. A garrafa pet, que outrora abrigara água de coco, agora era um parrudo tronco. Antes mero receptáculo, agora coração. As tampinhas faziam as vezes de pés e mãos, ligados ao tronco-exPET por barbantes. Uma bola de isopor insossa torna-se a cabeça cheia de personalidade, com cabelo de lã. Olhos, nariz e boca traçados a canetinha. Antes, entulho, agora boneca. Antes, quase lixo, agora a companheira do menino. Antes, quase nada; agora, quase tudo.

Por meses, o homem notou Lara, jeans, camiseta, igual a tantas, boca, carne, osso, pele. Conversaram. Ele indicou um livro, ela leu. E leu todos do mesmo autor do acervo da biblioteca do bairro. Ele mandou uma música, ela ouviu. E passou semanas conhecendo tudo o que aquela cantora gravara. Ele falou que fora campeão de natação, ela voltou às piscinas. Ele comentou que adorava a sensação de liberdade da bicicleta, ela passou a ir pedalando ao trabalho.

O menino fez Emília. Não venha com raquéis, marias, julias ou qualquer outra boneca, com nome ou não. Ele quer Emília. Pois Emília é... Emília. A Emília dele. Não tem outra Emília no mundo, por mais que garrafa pet, lã, barbante e tampinha haja aos montes.

Para o homem, Lara já não era igual a tantas, pele, carne, boca, ossos. Era a pele de Lara, a boca de Lara, os ossos de Lara, a boca – ah, a boca – de Lara. Era tudo dela e por ser ela, era dele. Deixou de ver julias, gabrielas, alices, isabelas, jeans, camiseta, carne. Ele quer Lara porque ela é... Lara. A Lara que ele forjou. Que será sempre dele não importa o caminho que seguirem, porque a Lara dele só existe para ele.

Ele pensa que molda sua Lara, assim como construíra sua Emília. Justamente o contrário: Emília e Lara que o criaram.

(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)