quarta-feira, 18 de julho de 2018

Memória do corpo




(crônica nova - última da trilogia sobre o tempo)


por Luciana Pinsky


Não foi assim de caso pensado. Toquei seu braço meio por acaso. Depois o acaso passou e o braço ficou. Mas comecemos pelo começo. Como se eu soubesse quando o começo começou.


Não sei. A memória do corpo é mais forte que a da mente. Só que ela é ruim de datas.

Palavras? Não registrei. Era para ser coisa rápida. Sempre compromissados, nós. Mas o tempo tem seus caprichos. Como ela.

Apoio o pé na parede. Espero. Quando passei eu a esperá-la?
Ao vê-la, os dentes procuram o lábio. Esses lábios que já. Os mesmos dentes que.

A partir daí dentes e lábios fizeram o que dentes e lábios devem fazer. Foi um blábláblá sem fim. Mas se me perguntar o que falamos, não sei. Futebol talvez. Algum livro que nos ocupou a noite. Banalidades sobre a política atual. E valas, diversas, o ar limpo almejado. Isso, valas e ar, certamente.

Minha mão no braço dela. Choque. Será estremecimento? Ou apenas resultado da secura de inverno?

A memória do corpo é mais forte que a do espírito. Só que ela se confunde. Por vezes, intencionalmente.

O braço eletrizado move-se para longe de minha mão: um gesto pretensamente trivial. Como nossa conversa, como meu toque, como nosso encontro. Como quase tudo na vida, que a gente acha que é assim mesmo por capricho do tal “deus sonso e ladrão”, mas que nós mesmos estamos cavando com nossos pés, nossas mãos e demais recursos que se fizerem presentes. Sei, divago. Mas o que você quer de mim? O que quer?

- Boa pergunta. O que você quer?...

É só o que lembro, é só o que consigo dizer hoje. E também que a memória do corpo é mais forte que a da alma. E ela é mortalmente sedutora.

(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)