segunda-feira, 19 de março de 2018

Margens



(crônica nova - 1ª da trilogia sobre o tempo)

por Luciana Pinsky

Queria que você me desse só o tempo jogado fora. Recolheria na maior alegria segundo por segundo do tempo da fila, do semáforo abrir. O tempo espremido em uma poltrona de avião. O congestionamento na estrada. Os minutos entre o pedido da conta e o papelzinho em suas mãos. Entre o sinal tocar e a aula começar. Entre subir no trem e conseguir sentar. Se for horário de pico, sorte a minha.

Esquece o telefone. Vem para mim.

Aproveitaria cada segundo desperdiçado. De tirar a tampa da caneta até começar a escrever. Do pão entrar no forno até ele crescer. Do computador ligar depois do botão acionado. Os comerciais antes do filme do Darín. Ah, os comerciais, onipresentes, são grandes aliados. Quinze minutos inteiros de intervalo em uma partida modorrenta de futebol. Os melhores quinze minutos do jogo, garanto.

Em vez do tédio, eu. Nós.

O tempo em que espera sua companhia do almoço. O quanto a moça da Claro demora a atendê-lo. Telemarketing, outro aliado!  A água esquentando no balde antes do banho (você não desperdiça água também, não é?). O tanto que você espera a criança na porta da escola. O tempo do elevador chegar. Do portão abrir. Da caixa do supermercado passar suas compras. No ponto, até o ônibus parar. O tempo entre dar o dinheiro e receber o troco. Entre o primeiro resmungo matinal do menino até ele efetivamente exigir sua presença.

Sua presença.

A minha ambição suprema sempre foi o momento antes de dormir, logo que você repousa o livro no criado mudo e apaga a luz. Se ao menos nesse tempo você fosse meu...Você se recusa: “afastaria o sono perfeito”. Tudo bem, fiquemos mudos. Mas dedique esse tempo só a mim. Eu saberei.


(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)

sexta-feira, 16 de março de 2018

I can’t believe in news yesterday

(artigo novo)

Hoje era para ter texto de ficção, mas não deu.

Um dia ela estava em classe acolhendo crianças, no outro tentava proteger o nariz ensanguentado depois de levar um golpe de cassetete de um membro da Guarda Municipal de São Paulo. Poderia ser uma professora do meu filho, do seu filho ou, quem sabe, do filho de algum membro da Guarda Municipal de São Paulo. Não, provavelmente não é professora nem de filhos nem de netos dos vereadores reunidos para discutir o projeto de lei solicitado pelo quase-ex-prefeito de São Paulo (que também não tem parentes em escola pública) e objeto de protesto de professores (em grande maioria, mulheres). Resumo: porrada em professoras municipais dentro da Câmara.

Pouco depois de o líder do governo, vereador João Jorge defender a porrada em professores (“a segurança pública tem que fazer valer seu trabalho”, segundo disse à Folha de S.Paulo), no Rio de Janeiro uma vereadora era abatida na rua com saraivada de balas (e junto com seu motorista). Veja, no Brasil foram eleitos, em 2016, 57.828 vereadores. Desses, apenas 13,5% (7.803) eram mulheres. Uma delas teve, no Rio de Janeiro, 46,5 mil votos, a quinta maior votação para o cargo na cidade. Cargo que Marielle Franco deixou de cumprir porque virou outra estatística: das mulheres assassinadas. Era minoria em vida (mulher, negra, eleita vereadora...) e continuou minoria em sua morte: em 2016 dos sempre espantosos 61 mil homicídios que tivemos, 4,5 mil atingiram mulheres. Ou seja, menos de 7,5%. 

Não sei se você acompanha política, se tem alguma preferência partidária. Não sei se gostava ou ao menos conhecia a atuação de Marielle Franco ou se acompanha a situação da educação pública em São Paulo. Mas sei que você é contra assassinatos a queima roupa e violência física contra professores. E que talvez, como eu, fique ainda um pouco mais chocado quando as vítimas são mulheres, que estão lutando por um pouco mais de terreno no espaço público. Certo?