sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Casa tombada

(conto novo)
por Luciana Pinsky

Primeiro foi a faca. De silicone, cortava fruta, legume, carne, a salvação de tantas noites. Não estava mais lá. Depois, notei a colher para sorvete. Não qualquer uma. Aquela que tem uma espécie de pá por trás, igual das sorveterias. Lembro quando encontramos e nos dissemos que a partir daquele momento, sorvete toda noite, que nem na viagem para Toscana.

Demorou, mas doeu o sumiço do descaroçador de azeitona. Para que você quer isso, perguntei. Você disse que às vezes a gente não sabe o que precisa até se deparar com o que precisa. E que eu iria adorar, já que era fã de azeitona. Ainda sou, e agora só com caroço.

A panela de pressão foi presente seu no nosso primeiro dia dos namorados. Você nunca fez feijão na vida? - riu. Na época você achava até minhas faltas engraçadas. Depois notou que elas se multiplicavam que nem gremlin molhado e a graça acabou. A panela ficou, intacta.

E a tábua? Eu tinha uma linda, de vidro. Você disse que ela servia para colocar na mesa, servir um queijinho, mas na hora da lida, só a de madeira. Ou de plástico. E percebi por quê. E agora, cadê?

Pior é olhar o vazio no lugar daquela xilogravura do Jota Borges pela qual nos apaixonamos juntos lá em Bezerros. Dava um ar quente para casa, um ar de casa da gente, mas quando a gente deixa de ser a gente a casa tem de deixar de ser quente? A xilo se foi, mas estranhamente as fotos você deixou todas, inclusive dos momentos felizes, assinando papel com cara de para sempre. Não tenho meu descaroçador de azeitona, mas preciso topar todo dia com o passado que o presente mudou.

Ah, e aquela estranha e pesada máscara que reclamei tanto de carregar de Botswana para cá porque ocupava muito espaço na mala e quando foi para a parede percebi que a artista só pode tê-la pensado para nossa casa? O que ponho lá agora? Nada mais cabe ali.

Estranhamente, ainda guardávamos CDs. Você levou aquele raro que eu tinha do Riachão, mas deixou o da Tulipa Ruiz que já está copiado e decorado. Será que Tulipa funciona sem Riachão? Será que reconheço a casa sem você? Abro um livro ao acaso. Presente meu para você no nosso aniversário de um ano, com dedicatória piegas: você me faz uma pessoa melhor. Agora quem sou? Pior?

Outro dia tive de imprimir um documento, tão raro isso. E corre para a vizinha, pois a impressora não existe mais. De volta, fui grampeá-lo. Com que grampeador? Tá tudo na metade por aqui, o vazio que se estende da cama à parede, do peito ao chuveiro.

Pois banheiro e quarto ficaram espaçosos demais. Ganhei as duas gavetas que você insistia em ocupar com perfumes, barbeador e até uns creminhos (que jamais usou). Os armários do quarto estava tentada a ocupar, mas quando abro, vem a vontade oposta, de esvaziar as minhas estantes até ficar só com o mínimo, para que tanta coisa, para que tanta coisa de alguém que já não é?

Raras vezes me largo despreocupada no sofá (sem pufe), mas logo sobe um arrepio: penso sentir a maçaneta girando daquele jeito tão seu de virar a maçaneta. Encaro. Inerte. Você nunca mais a fará girar, sei bem. Só não sei quem sou só.

Mas, prometo: a partir de hoje começo a me descobrir.

(Ilustração: Thomás Camargo Coutinho - http://www.flickr.com/photos/thomastaipa/)